História
Uma vida de música
Um Mestre Entre Nós
— Biografia
Lombardi pertence ao time de compositores lapidados por Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), uma das figuras mais importantes da música brasileira em todos os tempos. Integrante da Escola Camargo Guarnieri, que se firmou em São Paulo a partir dos anos 50, o compositor sorocabano figura no cenário musical contemporâneo ao lado de Osvaldo Lacerda, Marlos Nobre, Kilza Setti, Sérgio de Vasconcellos-Corrêa e Brenno Blauth, entre outros.
Nilson Lombardi colocou sua cidade natal, Sorocaba, no mapa-múndi da música erudita. Difundidas a partir da década de 60, suas composições têm sido interpretadas em recitais e gravadas em disco por Eudóxia de Barros, Attílio Mastrogiovanni, Orlando Retroz, Beatriz Balzi e Fábio Luz. Seu nome aparece na História da Música no Brasil, de Vasco Mariz (Ed. Nova Fronteira, págs. 382-383) e consta como verbete na Enciclopédia da Música Brasileira (Art Editora/Publifolha, pág. 454). Mais recentemente, recebeu o Prêmio APCA de Música Erudita — justa homenagem a um artista que, mesmo pouco difundido junto ao grande público e desprovido de esquema promocional, atraiu para suas composições a admiração de sucessivas gerações de intérpretes e apreciadores da música erudita contemporânea, no Brasil e no Exterior.
Lombardi pertence ao time de compositores lapidados por Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), uma das figuras mais importantes da música brasileira em todos os tempos. Integrante da Escola Camargo Guarnieri, que se firmou em São Paulo a partir dos anos 50, o compositor sorocabano figura no cenário musical contemporâneo ao lado de Osvaldo Lacerda, Marlos Nobre, Kilza Setti, Sérgio de Vasconcellos-Corrêa e Brenno Blauth, entre outros. O próprio Lombardi se define como um continuador da obra de Guarnieri, e localiza no ano de 1954, quando passou a estudar com o autor da Dança negra, o momento inicial da sua carreira de compositor.
Sobre Guarnieri, afirma Vasco Mariz:
O catálogo de obras de Camargo Guarnieri, publicado em 1979 pela Escola de Comunicações e Artes da USP, é a maior prova da operosidade do mestre. (...) É o maior conjunto de criação musical que o Brasil produziu, depois de Villa-Lobos, e não lhe fica muito atrás, nem em número nem em qualidade.
Do mestre, além das técnicas refinadas de construção musical, Lombardi herdou a inspiração nacionalista — embora a música lombardiana também se mostrasse sensível à estética cosmopolita que varreu o globo na segunda metade do Século XX, através das big bands, da bossa-nova e do jazz.
Para compreender o universo temático e criativo de Nilson Lombardi, é preciso regressar no tempo, para a cidade que o viu nascer, no dia 3 de janeiro de 1926. Localizada a cerca de cem quilômetros da capital São Paulo, Sorocaba estava, não só no aspecto físico, mas também culturalmente, a meio caminho entre o sertão e a metrópole. Sede econômica e política de uma região dominada pelos costumes rurais, a cidade perseguia, desde o século anterior, a vocação urbana materializada em suas fábricas de tecidos, escolas, jornais, vilas operárias e estrada-de-ferro. E, embora impregnada das tradições características do interior, cultivava, já então, uma vida social sofisticada para os padrões provincianos, em que não faltavam teatro, clubes, cinemas e, a partir de 1933, as primeiras rádios. A influência da Capital e a forte presença dos imigrantes, entre os quais estava a família Lombardi, seriam suficientes, ademais, para assegurar a pluralidade e a constante agitação do ambiente cultural sorocabano.
A família Lombardi morava a poucas quadras da igreja Catedral, em cuja praça ocorriam as manifestações religiosas e artísticas populares. O compositor lembra que, em criança, gostava de assistir às retretas e de seguir as procissões, atraído, é claro, pelo tom vibrante da música. Numa família de músicos amadores (o mais próximo era seu pai, o alfaiate José, que tocava violão), Lombardi teve contato, desde cedo, com diversos instrumentos e ritmos populares, antes de sua iniciação no piano e na música erudita (aos doze anos, chegou a compor uma valsa no cavaquinho). Assim, enquanto para muitos compositores do Século XX a busca da brasilidade se impôs como uma opção e, em alguns casos, quase uma obrigação estética e ideológica, para o sorocabano foi um caminho que se descortinou naturalmente, a partir de uma infância feliz e interiorana. Este caminho, mais tarde, seria percorrido por toda uma gama multicolorida de influências, sem prejuízo do nacionalismo inerente.
Nas palavras de Luis Trench, membro efetivo da Associação Paulista dos Críticos de Arte:
...verdadeiro Schumann brasileiro, [Nilson Lombardi] não nega suas origens, pelo contrário, faz [música] com requinte e espontaneidade, sem necessidade de ostentar exotismos.
Órfão de mãe aos 3 anos, Nilson foi criado pelo pai e a avó, dona Ana
José, pais de Nilson. José, além de alfaiate, era violonista
O aprendizado de piano começou tarde. Órfão de mãe (dona Estela faleceu quando o filho tinha três anos), o garoto foi criado pelo pai e pela avó paterna, Dona Ana — duas personalidades generosas que dominaram a infância do compositor, assegurando-lhe dias tranqüilos, embora não abastados. Nas famílias modestas, a tradição mandava que o jovem fosse trabalhar para ajudar com as despesas da casa, e assim, ao completar quinze anos, mesmo sem receber cobranças diretas, Nilson se empregou como telegrafista da Estrada de Ferro Sorocabana. Somente aos dezenove anos, já em seu segundo emprego, conseguiu iniciar os estudos de piano, e ainda teria que esperar três anos para juntar o dinheiro necessário e adquirir seu próprio instrumento. Até então, exercitava-se no piano de uma casa comercial, que o radialista Freitas Junior, amigo e parente, teve a gentileza de emprestar.
Com amigos de juventude, na década de 40
Foto da formatura no Instituto Musical de São Paulo (1954)
A princípio, Lombardi estudou com o padre belga José Zanolla, e, com o falecimento deste, passou a ter aulas com a professora Maria de Oliveira Cordeiro (Dona Nenê), diretora da Escola Chiafarelli. O pai, vendo seu esforço em estudar música e manter o emprego, decidiu liberá-lo do trabalho e o aconselhou a continuar os estudos em São Paulo. Livre de mais ocupações, Lombardi rumou para a Capital, onde passou a cursar piano no Instituto Musical e canto orfeônico e educação musical no Conservatório Paulista de Canto Orfeônico.
Em janeiro de 1954, Nilson Lombardi e sua mestra sorocabana subiram ao palco do Auditório Chiafarelli, em Sorocaba, para apresentar, ele como solista, os três movimentos do Concerto em Lá Menor para Piano e Orquestra, op. 54, de Schumann. Aquele ano foi um marco na biografia de Lombardi, que chegava à maturidade como instrumentista, sem, entretanto, pensar em composição. Nesse mesmo período, o sorocabano concluiu os cursos no Instituto Musical e no Conservatório Paulista, habilitando-se, graças ao diploma deste último, a atuar como professor. Finalmente, coroando um ano prodigioso, fez-se aluno de Camargo Guarnieri.
O encontro com o compositor, já então um músico aclamado internacionalmente, foi decisivo em sua vida. Lombardi recorda:
Guarnieri ocupava uma posição de primazia no cenário musical, porque fazia uso das normas da tradição musical brasileira, mas sempre com temas próprios, sem recorrer a temas folclóricos. Um dia eu li no jornal que ele oferecia bolsas de estudos para um curso de composição de seis meses, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Candidatei-me, fui aprovado e fiz o curso. Após esse período, eu e outros alunos propusemos que ele continuasse nos dando aulas particulares. Guarnieri aceitou, e acabei ficando quinze anos sob a sua orientação.
Recebendo de Guarnieri o diploma de Canto Orfeônico e Piano, 1954
Como aluno de Guarnieri, Lombardi passou a conviver com o primeiro escalão da música paulistana. O aprendizado passava, necessariamente, pelo profundo conhecimento das grandes obras musicais de todos os tempos. Por prazer e por necessidade, Lombardi e outros discípulos de Guarnieri se tornaram habitués do Teatro Municipal de São Paulo e de todas as salas onde, porventura, houvesse alguma atividade cultural. No campo da composição, os discípulos cerravam fileiras ao lado do mestre, valorizando a identidade musical brasileira.
Ainda nos tempos do Conservatório, Lombardi foi apresentado por Guarnieri à pianista Eudóxia de Barros, que veio a ser sua amiga e primeira intérprete. A partir dos anos 60, Eudóxia se tornou a grande divulgadora de toda uma escola de compositores, e sempre fez questão de incluir peças de Lombardi em seu repertório (já em 1966, a concertista apresentava em Washington, nos Estados Unidos, o Ponteio no 3, levando o The Washington Post a elogiar os “ritmos atraentes” que emergem de um movimento sonoro constante).
Sobre a arte do sorocabano, Eudóxia afirma, em e-mail de julho de 2002:
Como ele [Lombardi] é pianista, suas músicas são sempre muito pianísticas, além de muito melodiosas e brasileiras. A melodia é contagiante, enfim, ele tem um grande talento, especialmente para miniaturas, e me sinto sempre confortável tocando as suas composições.
Nilson rege a Orquestra Sinfônica Juvenil de Sorocaba (década de 50)
A obra lombardiana começou a despontar no cenário musical brasileiro a partir de 1960, ano em que o autor venceu o Concurso de Composição Musical para Piano com o Ciclo Miniatura, composto de Toada, Chorinho, Acalanto, Valsa e Baião. A repercussão do Ciclo fez com que Lombardi ficasse, invariavelmente, conhecido como miniaturista. Depois do Ciclo Miniatura, compôs a série Seis Miniaturas, que, transcrita para orquestra pelo musicólogo francês Michel Phillipot, integrou várias temporadas da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Embora possua obras de maior duração, o autor não esconde sua predileção por peças ligeiras, de aproximadamente um minuto.
Sobre esta característica de seu trabalho, costuma evocar as palavras do crítico Caldeira Filho, que explica:
(...) miniatura não é o simplesmente diminuto, pequenino e delicado. É o objeto total, com todos os seus pormenores, com todas as suas realidades, mas em ponto mínimo de dimensão. É como ver as coisas por um binóculo invertido: tudo se reduz em tamanho, mas nada se perde em exatidão ou realismo.
Comemoração pela vitória do Ciclo Miniatura no Concurso de Composição, 1960
Em 1963, Lombardi ganhou o primeiro lugar no Concurso de Composição promovido pela Comissão Paulista de Folclore, com Três canções folclóricas. Nesse mesmo ano, sua Toada para cordas foi executada pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, sob a regência de Camargo Guarnieri. Na década de 70, outros intérpretes descobriram a inspiração lombardiana, entre eles, o pianista Attílio Mastrogiovanni (que dedicou todo um LP à sua música), o organista Orlando Retroz e o violonista Pedro Cameron. Num encontro promovido pela antiga mestra, Dona Nenê, Lombardi foi apresentado a um jovem pianista que viria a ser seu grande amigo e, talvez, maior entusiasta. Hoje concertista internacional, residindo na Itália, Fábio Luz fez de Lombardi presença quase que obrigatória em seus discos e concertos.
Em e-mail de junho de 2002, Fábio declara:
Aprendi a conhecer a profunda verdade - a alma sincera - por trás de cada nota escrita por ele. De fato, o grande crítico musical e saudoso amigo Dr. José da Veiga Oliveira escreveu que "Nílson Lombardi é sempre sincero em cada nota que lança ao pentagrama" e justamente esse dom, enriquecido pelos conhecimentos que "cientificamente" Camargo Guarnieri lhe transmitiu, mais a imensa bagagem espiritual da maravilhosa pessoa que ele é, o tornam um dos mais talentosos compositores pianísticos da atualidade no Brasil, como bem define Luis Roberto Trench, crítico do jornal O Dia.
Nilson e Camargo Guarnieri no Aeroporto de Viracopos, 1963
Com Eudóxia de Barros, Osvaldo Lacerda e amigos, década de 70
Desde que surgiram em concertos e discos, as composições de Lombardi vêm recebendo elogios da crítica especializada.
José da Veiga Oliveira, em artigo de 1976 para o Diário Popular, afirma:
"O pianista canta brasileiramente, num lirismo de irresistível encanto." Caldeira Filho, em artigo de 1977, diz que Lombardi "...sabe desenvolver e sabe modular, ou seja, jogar com as cores sonoras."
Esse estilo de compor, conforme Lombardi, nasce de um esforço que mistura a emoção estética e o trabalho racional. A veia criadora, afirma ele, deve estar atrelada ao senso crítico, de forma que o autor possa sempre analisar o próprio trabalho. Graças à prática adquirida em anos de estudos, Lombardi consegue desenvolver e concluir uma miniatura em poucos minutos. A mais “popular” de todas, Para Luiza (Miniatura número 5 da série Seis Miniaturas), foi feita em doze minutos.
Sobre suas influências, Lombardi aponta Schumann, em primeiro plano, Chopin, Brahms, Debussy e Satie, além dos grandes nomes da música instrumental moderna. E detalha:
"Ouvi muita música americana e brasileira, jazz e bossa-nova. Meu trabalho está impregnado de várias correntes musicais, e muito pouco do classicismo, que aparece apenas em trabalhos isolados. Mas o que predomina sempre é o meu estilo, resultado da influência recebida de Guarnieri, que é o contraponto, o linearismo, a polifonia."
Lombardi também foi professor. Em 1958, ingressou por concurso no Magistério estadual e passou a dividir seu tempo entre os estudos com Camargo Guarnieri, em São Paulo, e as aulas na rede estadual — a princípio em Guararapes, na região da Grande São Paulo, e posteriormente em São Roque e Sorocaba. Em 1964, começou a dar aulas no Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos”, de Tatuí, onde atuou por dez anos, paralelamente às aulas nas escolas estaduais. Finalmente, em 1975, ingressou nos quadros da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como professor efetivo das disciplinas Estrutura da linguagem musical, Análise musical, Composição musical e Piano complementar. Nesta função, aposentou-se em 1992, após quase dezoito anos de serviço.
Ao longo de sua vida acadêmica, Lombardi jamais deixou de estudar. No início dos anos 70, recebeu durante três anos a orientação de Nellie Braga, da Escola Tagliaferro, outra importante influência. Em 1980, viajou à Europa e, durante quatro meses e meio, percorreu a estudo os principais centros musicais da França, Espanha, Inglaterra e Itália. No Conservatório Superior de Música de Paris, efetuou as pesquisas que resultaram na dissertação Os aspectos inovadores na técnica pianística de Claude Debussy. Na Espanha, aprofundou conhecimentos sobre os nacionalistas espanhóis Albéniz, Granados e Manuel de Falla, entre outros. Em 1984, obteve o título de mestre no curso de pós-graduação da Escola de Comunicação e Artes da USP, apresentando a tese Obra e estilo do compositor paulista Camargo Guarnieri. Escreveu, também, mais de trezentas páginas sobre a atuação do maestro Eleazar de Carvalho à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, cuja equipe integrou por quatro anos.
Muitas vezes, nos últimos cinqüenta anos, Lombardi tem sido o que se costuma chamar de agitador cultural. Em 1956, dirigiu o Coral Universitário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba. Em 57, também em sua cidade natal, regeu o Coral do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos. No ano seguinte, juntamente com William Fabri, organizou a Orquestra Juvenil de Sorocaba, da qual foi regente. Em 1961, ajudou a fundar a Sociedade Pró-Música Brasileira, em São Paulo. Entre 1968 e 1972, foi delegado da Secretaria de Estado da Cultura em Sorocaba. Em 1984, participou da fundação do Centro de Música Brasileira, onde atua até hoje. Nesse mesmo período, em Sorocaba, foi sócio-fundador do Centro Musical Sorocabano (Cemso), que promoveu dezenas de concertos internacionais.
A maior parte das obras de Nilson Lombardi se encontra editada ou gravada em disco. Com sorte, é possível apreciá-la em concertos e recitais (em março de 2002, a Orquestra Sinfonia Cultura, da Fundação Padre Anchieta, abriu sua temporada sinfônica com o concerto A Escola de Composição de Camargo Guarnieri, interpretando, de Lombardi, Seis Variações Sobre um Tema de Schoenberg, com regência de Lutero Rodrigues e solo de Eudóxia de Barros). As composições do sorocabano têm sido, também, largamente utilizadas como peças obrigatórias em exames e festivais, o que o faz conhecido, particularmente, entre os jovens instrumentistas. Em março de 2002, no Teatro Municipal de São Paulo, o autor recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), na categoria Música Erudita.
Aos 76 anos, Lombardi cultiva uma rotina agitada, que inclui viagens constantes à Capital, para participar das reuniões do Centro de Música Brasileira e também para assistir a concertos e recitais. Pessoa de muitos amigos, que cativa facilmente com sua personalidade alegre, está sempre às voltas com novos projetos na área cultural. Em Sorocaba, onde reside com familiares, na mesma casa que o viu crescer, tem recebido com freqüência o carinho e as homenagens de seus conterrâneos, que reconhecem em seu trabalho um dos motivos de projeção da cidade no campo das artes.